domingo, 10 de fevereiro de 2013

DE RAUL BRANDÃO:

"... O que há a fazer ao sonho é escondê-lo e recalcá-lo para que nos deixem viver ignorados.
Para que não o escarneçam. Para que os outros - os que não sonham - o não despedacem com uma alegria feroz.
Sonhar é um crime. Há uma altura da vida em que é forçoso escolher - ou o sonho ou a vida prática. 
O grande golpe então é matar o sonho e adquirir o hábito das pequenas coisas.
Há quem o estorcegue de repente a uma esquina; há quem leve mais tempo a liquidá-lo, misturando a vida prática com a vida quimérica, tentativa de que só resulta o mais negro despeito.
Creio que todos nascem com um quinhão de sonho, e que, mesmo nos que conseguem aniquilá-lo, há horas em que fixam o olhar num ponto dourado; em que voltam a cabeça com saudade.
... Mas é tarde; a labareda está reduzida a cinzas...
Talvez por isso mesmo odeiem secretamente os outros, os que sonham sempre, os que sonham até à velhice com um ar extravagante de lunáticos, não dando a mínima importância às coisas da vida consideradas importantes.
Pobres e ridículos sonham, e é esse o seu quinhão, melhor ou pior.
Os homens práticos pouco a pouco caem no sorvedouro que os traga e leva como sombras inúteis, enquanto que a caravana dos desgraçados lá segue o seu rumo à parte, de olhar estático, desprezada e secretamente invejada, sob os gritos de maldição..."

in A morte do palhaço de RAUL BRANDÃO




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