quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O jogo do mundo






"O jogo da macaca joga-se com uma pedra que tem de se empurrar com a biqueira do sapato.
 

Ingredientes: um passeio, uma pedra, um sapato e um belo desenho feito com giz, de

preferência colorido.

O Céu está lá ao fundo e a Terra aqui em baixo, é muito difícil acertar com a pedra no Céu,

calcula-se quase sempre mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, no entanto, vai-se

adquirin
do a habilidade necessária para acertar em todas as casas (a macaca em caracol,

rectangular, de fantasia, pouco utilizada), e um dia aprende-se a sair da Terra e a levar a pedra

até ao Céu, até chegar ao Céu (…); o problema é que é precisamente nessa altura, quando

quase ninguém aprendeu ainda a levar a pedra até ao Céu, que a infância se acaba e de repente

se cai nos romances, na angústia inútil, na especulação de outro Céu ao qual também é preciso

aprender a chegar.

E como já se saiu da infância (…) esquece-se que para chegar ao Céu são necessários uma pedra

e a biqueira do sapato, como utensílios básicos."

  





JULIO CORTAZAR





segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Envelhecer

Envelhecer




Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, 


sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o sginificado das coisas, tudo se repete 


tão terrível e fastidiosamente. 


Isso também é velhice. 


Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. 


E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer... 


Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, 


ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. 


A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito 


que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, 


deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, 


ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. 




Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, 


conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem 


da vida. 


Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreeende nem o imprevisto, nem o invulgar 


ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas 


nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice.



Sándor Márai  in As velas ardem até ao fim